Carlos
Guerreiro
DOCUMENTARY PHOTOGRAPHY
Aqui cada livro tem o seu tempo, onde o tempo não existe.

O mundo inteiro passa por esta exígua Babel perdida no Bairro Alto, onde habitam segredos de dois ofícios em vias de extinção e se resiste à vertigem tecnológica e à erosão do consumo literário, pelas mãos e conhecimento de Carlos Guerreiro - encadernador e dourador - um dos últimos mestres artesãos da cultura livresca e o único a conjugar as duas artes em Lisboa.
Na pequena oficina da Rua de São Boaventura, por entre livros amontoados, resgatados por gestos que não se aprendem em livros, desenrola-se o moroso processo de restauro e de encadernação artesanal que culmina na minuciosa e delicada arte de dourar.

Aqui, cada livro tem o seu tempo, e segundo Carlos: “nem o tempo existe...”. Podem passar-se dias até se dar um livro por concluído, dependendo da complexidade do trabalho entre mãos. Mãos artesãs, pacientes, que se delongam em rituais precisos e compassados, entre rigor e instinto apreendidos numa vida inteira de trabalho: do desmanchar de um livro folha a folha, ao cozer manualmente os cadernos que acasalam para “toda a vida”.

A ferro e fogo tatuam-se na pele ornamentos a ouro fino, com ajuda do fogão artesanal, dos dedos já queimados e do vapor de água para aferir a temperatura dos viradores e das rodas metálicas adornadas com motivos florais, ou dos compenedores e caracteres móveis de bronze que devolvem autorias e títulos às lombadas, concluindo-se mais um exemplar único, que promete transcender o tempo e perpetuar a palavra escrita.

Nesta oficina, atulhada até ao tecto de vocábulos, tão prenha de livros e memórias, de pergaminhos e de peles com odores acutilantes, de notas esparsas e fotografias avulsas com infâncias esquecidas, partilham-se minis geladas e dois dedos de conversa, desvelando-se um percurso lapidado pela adversidade, pela determinação e pelo amor aos livros.
A conciliação dos dois ofícios, que aos 61 anos ainda apaixonam Carlos e nos quais pretende trabalhar para além da reforma, adveio do infortúnio familiar que o aturdiu na infância e entregou aos cuidados do Instituto Padre António de Oliveira, antiga casa de correcção em Caxias, que acolhia jovens de contextos familiares desmanchados: meninos sem rumo nem culpa, abandonados à sorte e azar, numa instituição que visava transformá-los em homens de ofício.

Obrigado a crescer à pressa, escolhe fazê-lo por entre ferros, ouro e fogo na oficina de douração do mestre Vasco da Cruz, e, por entre páginas, peles e prensas, ao cuidado do Mestre encadernador Diogo de Noronha, professor residente que Carlos relembra com reverente amizade: “Um homem excepcional! Um grande mestre, um grande encadernador e um bom amigo de todos nós. Nunca o vi tratar mal ninguém”.

Aos 18 anos, foi convidado a trabalhar nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo onde, durante duas décadas, aprofundou o seu conhecimento técnico e o seu entusiasmo pelos livros: “conheço quase todo o espólio da Torre do Tombo… Vi livros com 200 anos ou mais, em que não havia as técnicas de agora, mas eram coisas fabulosas!”. Foi também responsável pelo restauro de importantes tesouros do património livresco português, entre os quais destaca: um dos volumes da “Bíblia dos Jerónimos”, o códice “Livro dos Copos”, mandado executar por D. João II a Álvaro Dias de Frielas, dois livros da “Leitura Nova” ordenados por D. Manuel I em 1504, e uma caixa em pele, que executou para conservar a Carta de Pêro Vaz de Caminha. 

Aos 22 anos, alugou uma velha oficina de encadernação e cartonagem no Bairro Alto, que restaurou de raiz, aproveitando algumas das máquinas, construindo a mãos o mobiliário e muitas das suas ferramentas, à medida das necessidades e das encomendas. Em 1998, decide pedir uma licença sem vencimento para se dedicar em exclusivo ao trabalho da oficina, que tem vindo a desenvolver até ao presente. 

É aqui, nesta exígua oficina, onde o tempo não existe e os gestos resistem, que passa um mundo inteiro: das suas mãos artesãs nasceram capas de documentos oficiais para a Rainha Isabel II de Inglaterra, outras tantas para o Príncipe Alberto do Mónaco, pastas de secretária para a Assembleia Nacional de Angola, Livros de Honra para a Assembleia da República e Presidência da República, trabalhos de restauro e encadernação para a Fundação Calouste Gulbenkian, Sociedade Portuguesa de Autores, alfarrabistas, artistas plásticos e particulares que procuram Carlos, vindos de todos os cantos do mundo. 

A fama da sua mestria precede-o e atravessa fronteiras, espalhada de boca em boca, por quem reconhece a qualidade ímpar e a crescente raridade do seu trabalho. 
Quando questionado sobre os trabalhos que mais gosta de fazer, a resposta brilha no olhar e sem hesitações partilha: “os meus livros, os que encaderno para mim e que nunca sei como vão ficar, dependem do meu estado de espírito…. são os livros que guardo sempre comigo”.
O amor pelos livros estende-se muito para além da paixão pelo ofício, e, para o encadernador, a sabedoria proverbial confirma a regra de que os livros não se podem julgar pela capa: “É como tentar conhecer uma mulher por uma fotografia, não faz sentido…”. 

É a alma dos livros e a poesia que encerram, que maravilham Carlos, confesso admirador de António Aleixo e de José Régio, que também se deixa enamorar pela poesia brasileira, muitas vezes presente na música que tanto gosta de ouvir.

Da poesia não se fica pela leitura, o encadernador oriundo de Benguela escreve poesia desde rapaz e compila as suas quadras e rimas em livros encadernados e dourados por si. Rimas e quadras que partilha entre auréolas de fumo, de um indolente cigarro que nunca se apaga e se delonga ao canto da boca. Entre estas, partilha outros segredos de autor, como a receita de gindungo caseiro ou das suas famosas bifanas, invejadas por chefes de cozinha e que levam muitos amigos a deslocar-se à oficina, para umas belas patuscadas de sábado à tarde.

Leitor inveterado, chegava a ler três livros diferentes ao mesmo tempo e sempre que lhe caía nas mãos um livro que cativava a sua atenção, por entre encadernações e restauros, anotava de imediato título e autoria para mais tarde o reencontrar nos alfarrabistas de Lisboa, que visita amiúde, sempre levando consigo pouco dinheiro, “porque senão, vou-me perder…”. 

Na oficina de Carlos, os livros são mestres e senhores, objectos dignos de tempo e de respeito. Recusa-se a reencadernar primeiras edições ou a defraudar originais antigos, afirma: “Não cometo genocídios! O meu respeito pelos livros não me permite... gosto de manter a originalidade das coisas”. Os seus livros são as excepções – exemplares únicos e irrepetíveis - pois que a regra dita: “nunca faço igual para ninguém”. 
Saberes artesanais que desvanecem na espiral de avanço tecnológico: tradições seculares tentam perdurar num contexto de crescente automatização, enquanto os hábitos de leitura se diluem no éter virtual e na celebração do imediato, não deixando muito tempo para as profissões que de tempo precisam:

“Aqui há 40 anos havia muito trabalho de encadernação, até aqui, no Bairro Alto, existiam muitas oficinas e tipografias, mas tudo se desmoronou… infelizmente já não se restaura nada e cada vez se investe menos em certas profissões, que vão desaparecer”, afirma Carlos, consciente de que a sua profissão é ofício em vias de extinção e de que os seus livros são objectos de luxo intemporal, adquiridos por uma elite que ainda pode comprar tempo e coleccionar livros enquanto objectos de arte e de conhecimento.

Se outrora os encadernadores eram considerados os parentes pobres das artes gráficas, os “papa-massa”, cujo trabalho de acabamento era considerado menor e desvalorizado em benefício dos douradores e técnicos de offset, hoje o ofício está longe de enriquecer os mestres artesãos. Profissões que se delongam não tendem a enriquecer, e estas duas demoram muito para além do investimento e dos anos necessários a formar um bom artífice ou uma boa oficina: “para montar tudo isto que está aqui, todos estes materiais que custam muito dinheiro, demora muito tempo… as pessoas pensam 2 vezes: então vou investir centenas e centenas de euros para só os ver daqui a 40 anos? Esta não é uma profissão para enriquecer, muito menos rapidamente…”.
Do tempo que demora a formar um encadernador ou dourador, fala-nos quem aprendeu com os melhores: “São ofícios de precisão, que necessitam de acompanhamento, de corrigir gestos, de aprender a postura do corpo, de encontrar o balanço certo, o equilíbrio, desenvolver sensibilidade… leva muito tempo… A tempo inteiro, uma pessoa que tenha aptidões naturais, se for bem acompanhada pelo mestre, demora cerca de 3 anos a formar”. Não obstante, a douração é um ofício mais exigente, que obriga a maior tempo de formação: “A aprendizagem é muito mais complicada. Daí haver mais encadernadores do que douradores”.
Para Carlos, a única forma de preservar os dois ofícios em vias de desaparecer, seria através de investimento por parte do Estado e com a ajuda de “mecenato privado que apoiasse o ensino e a conservação destes saberes”. Para o mestre, “a arte e a cultura não servem para dar lucro, nem devem ser vistas dessa forma” e “devia ser o Estado a fazer investimento no ensino – não seriam assim cursos tão caros”. 

À falta de investimento público ou de mecenato privado, restam-nos as mãos artesãs que resistem e os segredos seculares que persistem – neste lugar onde o tempo não existe e por onde um mundo inteiro passa.
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